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Jogos como Sistemas de Significados

1. O que é um Jogo?

1.1. A Brincadeira

  • Huizinga, em Homo Ludens, destaca que até os animais sabem brincar.
  • Dois filhotes de cão brincando de morder a orelha, por exemplo, é uma sofisticada interação que envolve todo um protocolo, uma cerimônia para que comece a brincadeira.
  • Os cães, ao brincar de morder, ao mesmo tempo em que comunicam “estou mordendo sua orelha”, também comunicam “não estou mordendo sua orelha de verdade, estou apenas brincando“, um alto nível de sofisticação de linguagem.
  • Além disso, os cães também fingem estar zangados. A interpretação de papéis durante a brincadeira é o que a torna divertida.

1.2. Homo Ludens

  • É o primeiro grande tratado sobre jogos, escrito pelo historiador holandês Johan Huizinga. O nome é uma provocação à taxonomia da espécie humana, Homo Sapiens.
    • Segundo Huizinga, o que nos diferencia dos outros animais não é somente nossa capacidade de raciocinar (Sapiens), mas também (e principalmente) de jogar (Ludens).Huizinga liga a natureza combativa e visceral da competição diretamente à guerra, à poesia, à arte, à religião e outros elementos essenciais da cultura humana.

1.3. Jogos e Cultura

  • Os jogos são mais antigos que a própria cultura.
  • Cultura é tudo aquilo que o homem faz.
  • A cultura humana começa com a cultura da terra (Revolução Agrícola).
  • Contudo, o jogo é anterior à sedentarização neolítica. O homem já jogava desde sua época nômade (paleolítico).

2. Interação Lúdica Significativa (ILS)

2.1. Quando a Brincadeira Perde a Graça

  • As brincadeiras (por exemplo: jogar uma bolinha) tendem a perder a graça rapidamente.
  • Ao adicionarmos uma pequena regra (quem deixar a bolinha cair no chão perde), a brincadeira ganha graça de novo. Ela se torna um jogo.
    • Isso acontece porque o jogo é uma função significativa.
      • Há um sentido em jogar (todo jogo significa alguma coisa) que transcende as necessidades imediatas da vida (comer, hidratar-se, dormir…).

2.2. Quando Começa o Jogo

  • Podemos dizer que o jogo começa na produção de significado.
    • Ao adicionar uma regra (não deixar a bolinha cair no chão) e um objetivo (pegar a bolinha para ganhar o jogo), houve produção de significado, e a interação (antes meramente lúdica) agora também é significativa.
  • A interação lúdica significativa (meaningful play), ou ILS, está presente em muitos jogos:
    • No duelo intelectual do xadrez;
    • No balé e improvisação do futebol;
    • Na dinâmica de identidade de World of Warcraft.

2.3. Escolha, Ação e Feedback (Discernimento)

  • A ILS surge da relação entre a ação do jogador e os resultados expressos no sistema do game, além do contexto em que o jogo é jogado.
    • As ações são provenientes das escolhas que os jogadores fazem ao longo do jogo;
    • O sistema do jogo é projetado para apoiar escolhas que façam sentido;
  • Só existe ILS se (e somente se) o sistema apresenta com clareza as escolhas, ações e resultados das ações para os jogadores, através de sistemas de feedback (sonoro, visual, tátil…)
    • Ao pegar moedas no Mario, o sistema nos avisa através de prazerosos feedbacks sonoros, além de feedback visual (as moedas somem, placar de pontos).
    • A falta de clareza no resultado de alguma ação em um jogo de futebol, por exemplo (foi gol ou não?) pode gerar brigas e discussões.
  • Ou seja, os significados das ações e resultados devem ser discerníveis.
  • Discernibilidade: o resultado é comunicado de forma perceptível e inequívoca.

2.4. Cadeia de Significados (Integrabilidade)

  • Cada mudança local dentro do jogo repercurte em uma alteração global no sistema do jogo.
    • Ao mover uma peça do tabuleiro de xadrez, as relações entre todas as peças são afetadas.
    • Ao pegar moedas no Mário, temos resultados locais (prazer sonoro, placar de pontos) mas também globais (a cada 100 moedas, o jogador ganha uma vida extra, aumentando suas chances de completar os níveis do jogo).
  • Portanto, as ações locais também devem ser integradas dentro de um objetivo maior do jogo.
  • Integrabilidade: o resultado tem efeito a curto e longo prazo dentro do sistema do jogo.
  • Quanto mais encadeada for a produção de significados dentro do jogo, mais legal de jogar ele fica.

3. Semiótica

3.1 O que é a Semiótica

  • A Semiótica estuda o processo de produção de significado, ou como os signos são criados e interpretados.
  • O significante é o que está sendo representado pelo signo (uma casa de verdade).
  • O signo representa o significante (um desenho de uma casa).
  • O significado é a relação subjetiva que se estabelece entre o signo e o significante.

3.2. Signos

  • Um signo é algo que representa algo para alguém, em algum aspecto ou capacidade (contexto).
    • 1. Um signo representa algo (diferente dele mesmo).
      • O signo está no lugar daquilo a que se refere, quando o significante não pode estar presente.
        • Um desenho de uma casa representa uma casa quando não há uma casa para mostrar, mas não é uma casa de verdade.
    • 2. Signos são interpretados por alguém.
      • A interpretação dos signos é sempre subjetiva, e depende do repertório do intérprete.
    • 3. O significado emerge da interpretação do signo.
      • O significado não está no signo, mas na interpretação que se faz dele.
    • 4. O contexto forma a interpretação.

3.3. A Tríade da Semiótica

  • Os signos podem ser classificados de acordo com a relação que estabelecem com o significante.
    • 1. Ícone: apresenta uma relação de semelhança entre o signo e o significado.
      • Exemplo: o desenho de uma casa (parece uma casa).
    • 2. Símbolo: apresenta uma relação de convenção entre o signo e o significado.
      • Exemplo: a palavra “casa” (não se parece com uma casa, mas foi convencionado que esse conjunto de caracteres se refere a uma casa de verdade).
    • 3. Índice: apresenta relação indicial (que indica algo) entre o signo e o significado.
      • Exemplo: as ruínas de uma casa (não se parece com uma casa, nem é convencionado que ruínas são casas. Mas as ruínas ali indicam que, outrora, havia uma casa).
  • Signos podem ser interpretados simultaneamente como ícones, símbolos e índices.
    • O desenho de uma cruz sobre a lousa:
      • É um ícone (do instrumento de tortura romana, pois se parece com ele);
      • É um símbolo (das religiões de origem cristã, pois assim foi convencionado);
      • É um índice (indica que ali houve uma aula, e indica que o professor sabe desenhar uma cruz).
  • Signos também podem ser interpretados de maneiras distintas, através do processo de ressignificação.
    • A palavra “trânsito”:
      • Pode indicar movimento (“Estou em trânsito”);
      • Pode indicar ausência de movimento (“Vou me atrasar, estou no trânsito”);
    • Os ícones de computador (botões “Salvar” e “Crop”, por exemplo) são, inicialmente, ícones e símbolos; mas com o desuso dos objetos que representam (o disquete e o crop tool), podem vir a ser apenas símbolos.

3.4. Semiótica nos Jogos

  • 1. Um signo representa algo (diferente dele mesmo).
    • Jogos usam signos para indicar ação e resultado.
      • X e O, no jogo da velha, significam os jogadores 1 e 2;
      • Um toque no braço, no pega-pega, significa “está com você” (é a vez do jogador tocado pegar a próxima vítima);
      • A palavra “PARALELEPÍPEDO” no jogo Scrabbles significa “muitos pontos” (a relação semântica desaparece – não faz referência ao objeto em si – permanecendo apenas a relação sintática – a quantidade de letras na palavra, bem como sua correta ortografia, resultam em muitos pontos para o jogador que a escrever no tabuleiro).
      • A bolsa que os avatares carregam em jogos de aventura (como Lara Croft) ao mesmo tempo são ícones (parecem uma bolsa de verdade) e símbolos (convenciona-se que a bolsa é o inventário do jogador, significando armazenamento);
      • Um casebre abandonado em um jogo de aventura atua como ícone (parece um casebre abandonado de verdade) e um índice (indica que preciso procurar uma chave que abra a porta).
  • 2. Signos são interpretados por alguém.
    • Por isso, procuramos trabalhar com conceitos mais universais possíveis (bolsa significa armazenamento), para que a maior parte dos jogadores possa interpretar os signos apresentados no jogo com clareza e discernimento.
  • 3. O significado emerge da interpretação do signo.
    • O próprio sistema do jogo oferece um processo de geração de valores dos signos, intrínsecos ao sistema.
      • No jogo de pedra-papel-tesoura, qual o valor da pedra?
      • Os jogadores interpretam o valor da pedra como sendo maior do que o da tesoura (pedra vence tesoura), mas menor que o do papel (papel vence pedra).
  • 4. O contexto forma a interpretação.
    • A interpretação dos signos dentro do jogo é apoiada por todo o sistema em volta deles.
Este é o símbolo do jogador em Packman.
É também um ícone (de uma boca).
Estes são ícones (de fantasmas).
São um símbolo de perigo, porque na vida real costumamos associar fantasmas à perigo.
Os olhos dos fantasmas são índices da direção para onde se movimentam.
Este é um ícone (de cereja).
Um símbolo de comida.
Por ser diferente dos outros “comestíveis” do jogo, é ainda um índice de que dá mais pontos.
As power pills não são ícones, porque não se parecem com nada. Mas é um símbolo de poder.
Ao ser “comida”, a power pill altera todas as relações internas no jogo.
Os fantasmas, de perigo, passam a ser símbolo de muitos pontos.

Tudo isso simboliza que um jogador só consegue jogar um jogo se entender todas as relações semióticas presentes.

Um jogo é tão rico e “legal” de se jogar quanto maior for a riqueza das relações semióticas entre os elementos.

Author:

Actor, Language Consultant, Astrologist and Game Design Student. Sagittarius, 26 y.o. - São Paulo/BR

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